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sábado, 25 de março de 2017

Todas as nossas águas fluem
A que molha e a que corre,
Sei que tantas águas me trazes,
A que molha e não dói
A que vaza, a que junta nossas almas,
Que se repetem, e parecem tão novas,
As que surpreendem, nos fazendo crescer,
As que nos levam adiante
As que sempre te encharcam,
as que vazam de alegrias dos olhos,
Dos teus seios,
Da tua boca,
As que entre as tuas pernas aliviam o tamanho do desejo,
As que refletem a admiração dos meus olhos,
As que refletem a tua face quando eu lembro


Charles Burck









Estorvo

O amor que eu dei, ela não compreendeu,
Perdeu-se em versos soltos em caminhos mortos,
Desenhando lugares onde lugares não há,
Mas as lembranças não partem,
A felicidade que um homem planta extravasa o seu jardim,
Pula o muro do vizinho e dá muda em outras hortas,
Eu de mim me doou de colheitas fartas,
Amor não falta, falta a intenção de quem o sinta
O que possa parecer farelo sobre a mesa
Podem ser perolas douradas, letras de canções,
A musa deu adeus ao poeta e foi morar em outros poemas,
Ainda sento na surrealidade do avarandar e morro todos os dias,
Pensando nela
Cato lembranças dos seus olhos fora de foco, fios das tranças mal feitas,
Mas o amor apodrece na rua, sem sepultura, ao relento da noite,
Cobrem-lhes as estrelas, o olhar caridoso de algum pobre infeliz,
Aos que passam chutam-no como a cachorro morto,
Xingam e zombam, sem compreenderem que o estorvo,
Só sonhou algum dia fazê-la feliz...


Charles Burck


Não sabia se expressar saudades habilitava-o a fazê-la perceber o quanto a amava
Não tinha certezas de nada, mas a amava de modo livre, sem cobranças
Colocar a flor em redomas perde-se o perfume, o viço
É possível fazê-la morrer sufocada,

Assim levava o seu amor sem amarras

Vivia simplesmente de amar,
Toda a sua vida era preenchida dessa inspiração,
Se sentia fome, era dos cheiros, dos beijos, de senti-la em si

Mas sentia-se capaz de amar sem sentir desejos também,
Transcendia os ter sem a presença.
Podia elaborar as imagens, os sons, os aromas que as lembranças perfeitamente conhecia  
Resguardava na alma cada elemento da química da essência dela

Mas a junção do amor e da saudade, por vezes, dão-nos conta da dimensão do quanto queremos,
E de repente tudo parece tão pouco nas telas memória,
O vício de tê-la sempre cultivava o prazer do mais querer, sempre,
E nessas horas de solidão o amor exagerava nos seus apelos,
E, ele se dava conta do tanto quanto a amava...


Charles Burck




Gestos


Rodeou-lhe a cintura como um laço de carinho,
O auxilio do braço num gesto de interação,
Com a suavidade de trazer segurança...
Um beijo na nuca que leva o corpo à tremura dos astros,
Sentiu o olhar dele atravessando sua estrutura estelar
Semicerrou os olhos e absorveu o sentimento que viera para ficar,
Ela gostava de observa-lo se mover, ou quando parado olhando absorto o mar,
Aquele homem que a consumia mesmo sem toca-la
Ainda não sabia porquê.
Envolvia-a com jeito menino, apesar da idade madura, despertava-lhe os sentidos como a forma de deixa-la florescer,
Uma maneira aparentemente displicente cheia de carinho e ternura
Não a incomodavam os gestos que noutra pessoa podiam parecer ofensivos.
Tudo nele era natural e sincero
Tinham vontades de crescerem juntos, desenvolverem seus sonhos
O que acontecia a partir de cada abraço, de cada beijos...
Olhavam-se cúmplices, sem nenhum segredo guardado,
O amor era sede anunciada de há muito.
Eram história difíceis de compreender, para quem está de fora,
Mas a eles, coisas de quem já se sabia ser desde sempre
E que se reencontram
Ali, no acontecer do momento.


Charles Burck



“Foi para ti
Que costurei os meus medos em folhas secas
E pendurei no colo dos ventos,
Que recolhi incertezas varrendo o chão de minha casa interna
Que dei-me todo quando sempre era meio.
Para ti fui tudo, olhos no mais profundo dos olhos,
Mergulhei sem saber do mar,
Que detive as chuvas com a vontade de fazer rios tranquilos
Para ti elaborei perfumes de essências de luas cheias,
Toquei o âmago da terra,
E escrevi palavras que não dizia
Todas me falaram, mas ainda não diziam tudo o que eu tenho
Volto-me a reconhecer, tão cheio de ti, mas reconstruindo a mim




Charles Burck 
Pequenos Feitiços


No dia seguinte, depois da chuva, saíamos para pisar nas poças
Olhar os estragos feitos pelas águas, a mata ciliar abatida,
O dia ficava diferente com as coisas úmidas,
A curva do leito do rio mudou de lugar,
Íamos sempre acompanhados de surpresas que aconteceriam
Aprendendo a procurar a magia que não se mostrava evidente
Ela tinha um jeito de bruxa e de fada quando me falava do poder das pedras e dos cogumelos,
Das folhas que adoeciam ou curavam
Dos frutos que tiravam a dor
Sabia que tinham chuvas pratas e chuvas marrons,
Ela tinha cânticos de amor a natureza e rabiscava no chão histórias antigas de nós,
Riamos como quem entra num livro e os personagens éramos nós,
Tinha o dom de ouvir com os olhos, cada frase minha dita
De se atentar aos meus pequenos descuidos,
De varrer o pó tanto de fora quanto de dentro
Os olhos dela se lembrava mais, sabia mais,
Os olhos que diziam mais do que quaisquer palavras.
A chuva voltou
Ficamos calados, apenas a ouvíamos cantar sua ladainha de lavar a vida
Tantas promessas havia em nossos silêncios, tantas vezes neles embarcávamos
Viagens de não mais esquecer.
Pequenos feitiços de cuidarmos de nós
e a chuva sabia disso, e cantava também a isso




Charles Burck







Essencial


Achava-se vivendo no sonho
Sempre voltava do sonho com uma saudade imensa,
O toque de sândalo e uma pedrinha no bolso direito,
Davam-lhe as boas vindas ao fechar as pálpebras
Janelas por onde as histórias fluíam,
Colhia amoras de amores plantadas ao caminho como fonemas maduros
Pronta para começar tudo de novo
Caminhava com confiança e sem qualquer razão conhecida, sabia que tudo se desenvolvia melhor quando apenas amavam sem perguntas
Sem tentar entender o amor,
Cada parada devolvia-lhes o vigor imprescindível para colher a vida.
Fechava as janelas no abraço cúmplice das pestanas que não precisava ver a vida para ser-se.
Deixava-se se envolvida
Abandonava-se e por lá ficava até ter fome de acordar.
No ato de não interpelar a vida crescia mais,
Alimentava o melhor de tudo ao dar lembranças às feições dele,
Ao saber que as almas sentem sem precisar de nós.
Ao que somos verde natureza e azul mar, prosa e versos no ato de amar
Distâncias, lonjuras de coisas que não temos, mas sentimos saudades
Somos as substâncias e as essências atuando,
O amor nos embrulhando em papeis de presente
E doando de nós a nós mesmos



Charles Burck



Às vezes o mormaço cobre de brumas o que eu vejo,
Os porquês somos nós mesmos vasculhado os ossos, os depósitos de velhas histórias
As pessoas assomam à mesa se serem convidadas,
Ninguém pode mudar a vida que eu não tenho, a não ser eu mesmo
O rumo dos dias navega entre vagas e marasmos frequentes,
A vida parecia sobrar e os espaços encolher.
O galo cantou as dez para onze, o atraso causou-me ligeiro desconforto,
Os fantasmas das minhas histórias ajustaram o relógio do tempo,
E de tempos em tempos saem do fundo duma gaveta.
E o tempo se esgota, a barriga amedronta, os cabelos desbotam, a porta range suas velhas ferrugens,
A identidade perdida no meio dos antigos papeis,
As fotografias que julgávamos perdidas surgem amareladas,
O diploma de acomodar numa rede ainda tem valia,
O anel de doutor é um escracho memorável, o dedo engordou
Eu tenho a sensação que ando irônico demais,
A minha analista falou que o ponto de equilíbrio é o centro,
Fiz um circulo no quintal, me pus dentro e nada mudou
Continuo ácido, nessa minha alquimia que me ferve o sangue,
O que eu desejava então...? Afinal eu estivera assim, neste lugar que agora me parece ser o mais óbvio, por tanto tempo.
Vazando o ópio, a visão turvada de tanto enxergar o que não me serve,
A cheirar a bolorenta poeira que nunca se assenta
Preciso parar de me enganar, rasgar os ternos pretos, fazer uma faxina por fora e por dentro, uma lavagem geral.
É o tempo de revirar as coisas, descobrir espaços, arrancar os nos da garganta, a velha gravata vermelha já não cabe mais,
O velho pijama de calças curtas não se deita mais com a camisola de renda
Tirar o mofo antigo, arejar os caminhos e me abrir às coisas mais novas,
A simplicidade de nada querer, nada desejar, as prateleiras já estão cheias de tralhas,
E as traças gostam de comer velhas histórias


Charles Burck